domingo, 21 de fevereiro de 2010

Khadijah, Arnel, ou o poder de acreditar

Apesar de actualmente a televisão nos brindar - ou por vezes, martirizar - com dezenas de canais, no meu caso, acabo por ver apenas sempre os mesmos quatro ou cinco, e esses para mim seriam mais do que suficientes.
O que vejo mais é o Travel Channel, é esse que me faz sonhar, rir, viajar sem gastar dinheiro e sem sair do sofá... este último pormenor tem algumas vantagens (por exemplo para quem tem uma ânsia enorme de conhecer o mundo e um proporcional pavor de andar de avião) mas também muitas desvantagens... claro que não há qualquer comparação entre viajar de facto e ver esses programas de viagens, mas o que é certo é que já aprendi imenso e já fiquei a conhecer imensos lugares, tradições, gastronomia, e tudo o mais que se possa imaginar.

Outro dos canais que vejo de vez em quando é a Sic Mulher, e um dos programas de que mais gosto é o Oprah Winfrey Show. E foi nesse programa que vi duas histórias que me comoveram bastante.

Uma delas foi a história de Khadijah, uma menina afro-americana que teve uma infância muito, mas mesmo muito pobre, tendo vivido com a mãe e a irmã em abrigos e até em estações de autocarro, porque nem sequer tinham uma casa onde viver. O que é certo é que a mãe de Khadijah, apesar das enormes dificuldades por que sempre passaram, sempre incutiu na filha a ideia de que aquela situação podia ser alterada, que não era nenhuma maldição a que estariam condenadas para sempre... apesar de tudo, ele tinha grandes expectativas para a filha. Khadijah cedo percebeu que seria através dos estudos, do saber, que a sua vida iria mudar. Descobriu a utilidade da biblioteca pública, e era aí que passava grande parte do seu tempo. Descobriu também que a única coisa que podia controlar era o quanto queria e podia aprender.
E essas ideias foram de tal modo absorvidas por Khadijah, que hoje ela é caloira na prestigiada Universidade de Harvard. Ela é a prova viva de que ninguém está condenado a uma vida de miséria ou sofrimento. É preciso seguir os seus ideais, lutar, e provar que se é capaz.

Ainda no mesmo programa foi contada a história Arnel Pineda, que passou a sua infância num bairro muito pobre das Filipinas. Perdeu a mãe aos 13 anos, mas esses anos foram suficientes para que ele tivesse interiorizado a mensagem que ela sempre lhe passou: ele ia ser capaz de mudar de vida! É tremendamente emocionante vê-lo, com os olhos cheios de lágrimas, a recordar as palavras da sua mãe, que sempre acreditou nele e na sua vocação para a música. De facto, a sua voz é pura magia, e tem uma cara de boa pessoa, um sorriso e uma humildade que não enganam ninguém.


Journey (com Arnel Pineda), Don't stop believing



Os Journey são uma banda já com décadas de existência, mas que se viram obrigados a procurar um novo vocalista depois de Steve Perry ter decidido abandonar a banda.
Foi então que as forças do universo os levaram até Arnel Pineda, que cantava nas ruas a troco de algumas moedas.
Foi descoberto pelos Journey através de um vídeo no YouTube.




Agarra-te a este sentimento, não deixes de acreditar!


sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Esta semana só dá Pessoa por aqui...


















Aconteceu-me do alto do infinito
Esta vida. Através de nevoeiros,
Do meu próprio ermo ser fumos primeiros,
Vim ganhando, e através estranhos ritos

De sombra e luz ocasional, e gritos
Vagos ao longe, e assomos passageiros
De saudade incógnita, luzeiros
De divino, este ser fosco e proscrito...

Caiu chuva em passados que fui eu.
Houve planícies de céu baixo e neve
Nalguma coisa de alma do que é meu.

Narrei-me à sombra e não me achei sentido.
Hoje sei-me o deserto onde Deus teve
Outrora a sua capital de olvido...


Fernando Pessoa, Passos da Cruz, X

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Hora suave






















(foto de Isabel Marques)



Ah, quanta vez, na hora suave
Em que me esqueço,
Vejo passar um voo de ave
E me entristeço!

Porque é ligeiro, leve, certo
No ar de amavio?
Porque vai sob o céu aberto
Sem um desvio?

Porque ter asas simboliza
A liberdade
Que a vida nega e a alma precisa?
Sei que me invade

Um horror de me ter que cobre
Como uma cheia
Meu coração, e entorna sobre
Minh'alma alheia

Um desejo, não de ser ave,
Mas de poder
Ter não sei quê do voo suave
Dentro em meu ser.

Fernando Pessoa, «Poesias»

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Sem título

Antes de mais nada quero deixar aqui uma palavra de solidariedade para com a Cláudia (do blog Sabor Saudade) que está neste momento a passar pela terrível dor de ter perdido o irmão abruptamente, e de se ver a braços não só com os seus próprios sentimentos, como ainda ter que dar o consolo possível aos pais.

Cláudia, como já te disse, quem me dera ser capaz de dizer alguma coisa de consolador, mas é tão difícil ver sentido nestas coisas... Só espero que vocês tenham muita força espiritual para superar este momento. Os meus pensamentos estão aí também.



Deixo-vos entretanto algumas fotos tiradas no passado fim-de-semana, no Alentejo. São para ser apreciadas por todos quantos passarem por aqui, mas dedico-as em especial à Cláudia, já que foi ela que me contagiou com o bichinho das colagens...


Terra de pão e vinho



E outros petiscos

A princesinha

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Em Pessoa



Seguramente Fernando Pessoa escreveu:


LISBON REVISITED
(1923)

Não: Não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!
(...)
(Heterónimo Álvaro de Campos)

Escreveu:


Sonho. Não sei quem sou neste momento.
Durmo sentindo-me. Na hora calma
Meu pensamento esquece o pensamento,
Minha alma não tem alma.

Se existo é um erro eu o saber. Se acordo
Parece que erro. Sinto que não sei.
Nada quero nem tenho nem recordo.
Não tenho ser nem lei.

Lapso da consciência entre ilusões,
Fantasmas me limitam e me contêm.
Dorme insciente de alheios corações,
Coração de ninguém.

Também escreveu:

TABACARIA

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
(...)
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

(...)

(Heterónimo Álvaro de Campos)


Escreveu:

Não sei quantas almas tenho. Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo : "Fui eu?"
Deus sabe, porque o escreveu.

(Heterónimo Alberto Caeiro)

Apesar de ser um poeta multifacetado (ao extremo),
muito dificilmente Fernando Pessoa teria escrito isto:


"Posso ter defeitos, viver ansioso e ficar irritado algumas vezes,
mas não esqueço de que minha vida é a maior empresa do mundo.
E que posso evitar que ela vá à falência.
Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver apesar de todos os desafios,
incompreensões e períodos de crise.

Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e
se tornar um autor da própria história.
É atravessar desertos fora de si, mas ser capaz de encontrar
um oásis no recôndito da sua alma .
É agradecer a Deus a cada manhã pelo milagre da vida.
Ser feliz é não ter medo dos próprios sentimentos.
É saber falar de si mesmo.
É ter coragem para ouvir um 'não'.

É ter segurança para receber uma crítica, mesmo que injusta.

Pedras no caminho?
Guardo todas, um dia vou construir um castelo..."


**

Este último poema circula já há uns tempos na net,
com autoria atribuída a Fernando Pessoa.



Claro que eu não tenho a presunção de julgar conhecer toda a vastíssima
obra de Pessoa, constituída por largas centenas de poemas.

Mas quem conhece um pouco da obra deste poeta maior,
facilmente verificará que é absolutamente improvável
(para não dizer impossível) que o angustiado, insatisfeito e depressivo
Pessoa tenha escrito um texto tão optimista... tão levemente optimista.


Não digo que a mensagem não seja boa, mas não tem absolutamente nada
a ver com

a alma agitada de Pessoa nem com os sentimentos que ele
transmitiu, bem pelo contrário.

Passa uma mensagem totalmente contrária àquela que marca a obra
do poeta.

Já para não falar do estilo, nem vou entrar por aí...
Além de tudo o mais, como se não fosse já suficientemente óbvio,
são evidentes as marcas
do português do Brasil,
que marquei no texto a azul.

E ainda uma incorrecção: ...não esqueço de que...

Como amante de Fernando Pessoa e da sua obra genial,
apenas deixo aqui um apelo:

divulguem este poema à vontade, mas por favor não atribuam a sua
autoria
ao autor da «Mensagem».